Total de visualizações de página

sábado, 21 de janeiro de 2012

“Você tem que aprender a trabalhar com as suas dificuldades, para fazer delas o mínimo.”



Entrevista Fábio Batista dos Santos
Aos 24 anos, o baiano de Cruz das Almas, Fábio Batista dos Santos, vive em Salvador e está terminando a faculdade de Direito.  Ele descobriu que era disléxico há três anos, quando foi para o Reino Unido estudar Comunicação. Atualmente, mantém o blog Nuven Digital – “É ‘nuven’ com ‘n’ mesmo”, ele diz, explicando seu erro na hora de registrar o domínio. Nesta entrevista, Fábio conta como foi para o Reino Unido, compara como a dislexia é tratada nesse país e no Brasil, e fala de sua vontade de criar um espaço para que os disléxicos compartilhem experiências.
Instituto ABCD: Como foi sua trajetória escolar?
Fábio Batista dos Santos: Eu lembro que desde que entrei na educação infantil e comecei a aprender as letras, achava muito difícil. Aos 6 anos, começaram as cobranças, as provas… Eu ficava muito estressado, aí, tive que traçar uma estratégia… Eu ficava na escola até o meio-dia, almoçava e ia para uma mesinha que a gente tinha em casa, para fazer as atividades da escola. Ficava lá até umas 3 horas. Pra mim, era tudo difícil: direita, esquerda, sucessor, antecessor… Aquilo era coisa que eu tinha que me trancar e ficar estudando, repetindo, repetindo, repetindo, até conseguir gravar. Eu também fazia isso com os textos. Passava o final de semana todo, decorando porque eu não conseguia ler em voz alta. Então, era o melhor leitor da classe, tirava as melhores notas, mas sempre colocando duas, três, ou quatro vezes mais trabalho do que os meus colegas. Ao mesmo tempo, por sugestão das outras pessoas, eu achava que era incompetente, preguiçoso. Mas, no fundo, não entendia por que eu aprendia fácil matemática, física, química, e ortografia e gramática não entravam na minha cabeça.
Instituto ABCD: Depois você foi estudar Direito e de repente resolveu fazer um mestrado em Comunicação no Reino Unido. Como foi essa estória?
FBS: Lá no interior da Bahia, em Cruz das Almas, onde nasci, comecei a aprender inglês na escola pública, quando tinha uns 6 anos. Quando fiz 14, ganhei de presente um curso de inglês, que acabei concluindo por meio de bolsa. Aos 18 anos, vim para Salvador, porque consegui outra bolsa do ProUni [Programa Universidade para Todos, do Governo Federal] para cursar Direito. Como tinha afinidade com a língua inglesa, consegui meu primeiro emprego em uma pousada. Lá, conheci pessoas de diversos países e fui mantendo os contatos. Aos 21 anos, durante o Carnaval, estava meio cansado dos assuntos jurídicos e resolvi fazer uma revista sobre sustentabilidade, literatura… Tinha umas 36 páginas. Eu mesmo fiz, diagramei e colei as páginas, bem artesanal. A revista teve seis edições, que eu distribuía em Salvador, e também mandava para umas 30 pessoas fora do país. Mandei para Portugal, China, Estados Unidos, França, Noruega, Reino Unido, Itália…
Instituto ABCD: Como foi a recepção da revista?
FBS: A resposta que eu tive da maioria dos brasileiros era que estava cheia de erros de português. Mas os estrangeiros olharam mais o lado criativo do trabalho e elogiaram o fato de eu ter resolvido a diagramação tudo com software livre. Como eles não entendiam o português, não precisava explicar os erros (risos). Na universidade, eu estava para perder minha bolsa porque minhas notas estavam caindo e provavelmente eu ia ter que voltar para o interior. Então, essas pessoas sabiam da minha dificuldade e uma delas resolveu me oferecer uma bolsa para eu ir estudar Comunicação no Reino Unido.
Instituto ABCD: Como você descobriu que era disléxico?
FBS: Foi justo no Reino Unido… Antes de começar o mestrado, os estudantes estrangeiros no Reino Unido tinham que fazer um curso para se familiarizar com a cultura europeia e com os parâmetros das avaliações que teríamos pela frente. Uma das avaliações que a gente tinha era de compreensão. A gente escutava as matérias da BBC e respondia perguntas escritas. Um dos programas falava sobre dificuldades de aprendizagem e dislexia. Quando chegou ao final da aula, eu falei para o professor que eu tinha me identificado com a dificuldade de leitura e produção de textos e que achava que tinha esse problema. Ele disse que ia conversar com a coordenadora para saber se eu podia fazer um teste. A coordenadora concordou, mas disse que eu tinha que pagar. Consegui o dinheiro, fiz o teste e deu que eu era disléxico. Não sei se a aula foi colocada propositalmente no programa ou se foi sorte, mas devido a essa aula descobri, aos 21 anos, que eu tinha dislexia.
Instituto ABCD: Isso mudou alguma coisa na sua vida?
FBS: Mudou muito porque você tira um peso das costas de achar que não é capaz.  Você começa a perceber que o problema não está em você, mas no sistema de ensino, que não tem espaço para a diferença. Nosso sistema educacional foi feito para educar em turmas. As crianças são colocadas juntas e espera-se que todas sejam iguais e tenham resultados parecidos. Mas o disléxico quebra isso porque o modo como ele aprende e se comunica é diferente. Então o sistema não consegue receber esse aluno, que não se enquadra.
Instituto ABCD: Você notou diferença entre a escola/faculdade brasileira e a escola/faculdade inglesa?
FBS: Sim. Lá existe uma relação muito forte entre pesquisa e política pública. O governo escuta muito o que a pesquisa descobre. Se os estudos mostram que 10% da população têm algum tipo de deficiência – lá a dislexia é considerada uma deficiência –, eles se adaptam e as pessoas têm direito a alguns benefícios.
Instituto ABCD: Você pode dar exemplos?
FBS: Eles têm direito a ter acesso a técnicas e profissionais para ajudá-los, sejam leitores, aulas extras, tempo maior para realizar as provas, uso de computador, programa de leitura… Eu chegava à biblioteca, pegava o livro, digitalizava e o computador lia para mim, em uma salinha individual, sem barulho. Então, a leitura deixou de ser uma coisa dolorosa para mim. Passou a ser trabalhosa, mas não dolorosa [risos]. Enfim, o governo faz um grande trabalho pra evitar que os disléxicos sejam marginalizados.
Instituto ABCD: Mesmo com a sua dificuldade de escrita, você foi estudar Comunicação e hoje tem um blog. Por quê?
FBS: Eu não aprendi música, dança, não tive acesso a outros tipos de educação na escola. Só fui educado para ser hábil em leitura e escrita. Se eu tivesse tido acesso a outros tipos de expressão na infância, talvez seguisse outro caminho mais fácil. Em Londres, por exemplo, fiz um curso de cinema, e hoje tento usar a linguagem audiovisual. Mas a questão é que o disléxico transforma a sua dificuldade em sua maior obsessão. Porque você recebe tanto não, que você começa a se perguntar o que isso tem de tão especial? Eu não consigo escrever como eu gostaria, mas eu gosto do que a escrita pode fazer: levar ideias de um lado para o outro. No meu blog, escrevo e peço para alguém corrigir a ortografia e gramática ou então tenho o insight e peço para os meus colaboradores escreverem.
Instituto ABCD: Normalmente o disléxico tem dificuldade de leitura e escrita em qualquer língua. Como foi pra você ir estudar em inglês?
FBS: Pra mim o inglês foi mais fácil porque as regras não são tão fixas. Quando você erra em português, perde a redação, o vestibular, tira nota baixa… No Reino Unido, o grande problema é se você errou o raciocínio. Se você errou uma palavra, mas disse o que queria dizer, é perfeitamente aceitável. É uma cultura mais aberta para a variedade.
Instituto ABCD: Como foi voltar para o Brasil?
FBS: Fiquei 2,5 anos no Reino Unido e, quando percebi que ia ter que voltar, quase tive uma crise de pânico porque eu comecei a perceber que aqui eu não ia ter espaço, as pessoas não iam entender meus erros… Então, a primeira coisa que eu fiz foi fazer um curso de preparação para disléxicos lá no Reino Unido. Foram 10 semanas, com um profissional, a quem eu ia expondo os meus problemas. A tutora falava que parecia que eu estava tendo uma crise de pânico quando eu falava o que eu tinha que fazer no Brasil. Falava pra eu relaxar! Mas quando cheguei aqui, aconteceu o que eu estava prevendo. É a falta de compreensão, a ideia de que todo o mundo tem que ser igual e, de que, se você é diferente, de alguma forma falhou… E não é só escola, às vezes é até entre os amigos.
Instituto ABCD: Você sentiu dificuldade para entrar no mercado de trabalho no Brasil especificamente por causa da dislexia?
FBS: Sempre! Estou no Brasil há dez meses e tento, mas o currículo é um bicho de sete cabeças. Mesmo com a minha experiência de ter feito cinema, comunicação, ter trabalhado na rua gravando, ter feito dois curtas que estão na internet, eu não consigo escrever tudo isso em uma folhinha A4. A dislexia também afeta a comunicação e você nem sempre consegue falar o que queria; as pessoas não entendem. Na hora do estresse, eu gaguejo e troco palavras…
Instituto ABCD: No Reino Unido esse cenário seria diferente?
FBSSim, lá, mesmo ainda sendo um estudante, trabalhei na área de comunicação. Editei vídeos e ensinei português [risos]. A inserção é mais fácil porque existe uma legislação específica em relação à dislexia, e o cumprimento dela é bem mais eficiente. As empresas pedem assessoria de alguém para contratar deficientes e para estudar como eles podem dar o seu melhor. Porque da mesma forma que os disléxicos têm problemas, esses problemas geram outras habilidades. O disléxico, por exemplo, tem uma persistência muito grande, sabe trabalhar em grupo e consegue ver soluções que as outras pessoas não veem. As empresas precisam de alguém que pense diferente porque, combinado com outras pessoas, isso é perfeito.
Instituto ABCD: Você voltou recentemente a estudar Direito e poderia advogar em favor dessa causa…
FBS: Eu até tenho vontade, mas como não existe uma legislação específica sobre a dislexia, tenho dificuldade de chegar ao final do curso de Direito. O que as pessoas com dislexia podem fazer é se organizar, começar a entender mais o problema e explicar como funciona a sua própria dislexia. Tem coisas básicas que poderiam ser mudadas, como a inclusão do leitor no concurso público. Se o disléxico escuta a pergunta ao invés de ler, ele gasta muito menos energia mental para se concentrar na resposta. E outras questões também, como criar grupos e encontros para adultos disléxicos… Porque você tem que trabalhar as crianças no sentido da prevenção para entrar no mundo adulto. Mas existem muitos adultos que já chegaram lá, como eu, e não sabem como lidar com a dificuldade com a escrita e outros problemas. Então é preciso escrever livros, traduzir o que já existe, compartilhar.  E aí é um recado para as editoras no Brasil: vamos fazer mais audiolivros, porque tem gente que quer escutar! E aqui tem todo um mercado porque, se no Brasil somos 200 milhões, há um mercado de milhões de pessoas para muita gente criar produtos e serviços que resolvam o problema de muitos disléxicos.
Instituto ABCD: O que a dislexia te trouxe de bom?
FBS: Quando eu era criança, eu desenhava muito bem, pintava, fazia artesanato em barro… Sempre tive uma criatividade muito elevada, o que me ajudou a ver saídas para os meus problemas econômicos e sociais, porque eu não via só a minha realidade, eu usava a imaginação para ver onde eu podia chegar. Então, a dislexia me deu um pensamento lateral muito forte, e vivo vendo soluções para problemas para os quais eu não sou pago. Também aprendi a facilmente me relacionar com o outro. Mas cada disléxico tem um pacotezinho com dificuldades e habilidades. Então, você tem que aprender a trabalhar com as suas dificuldades, para fazer delas o mínimo; e com suas as habilidades, para fazer delas o máximo. E nisso os professores têm que pensar: na mensagem que estão passando para a criança. Claro que eles não podem acabar com as provas, mas podem mandar a mensagem de que a criança vai conseguir, de que ela é capaz. Isso já faria uma diferença absurda.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe aqui seu comentário.